Um escravo de Maria na Índia do século XVIII

O sacerdote indiano José Vaz, que se consagrou a Nossa Senhora como escravo, foi o grande apóstolo de Sri Lanka, o antigo Ceilão. Para entrar nesse país, onde a Igreja vivia perseguida, o zeloso missionário disfarçou-se também como escravo.

Em meio às graças que, com as grandes navegações do século XVI, fizeram expandir consideravelmente a Fé para novos continentes, também na Índia a Santa Igreja tomou novo impulso.

Com efeito, ao aportar na costa do Malabar, em 1498, Vasco da Gama ali encontrou uma numerosa comunidade de católicos, cujos antepassados haviam sido convertidos em remotos tempos pelo Apóstolo São Tomé. Com o passar dos séculos, parecia em vias de extinção a Fé desses indianos que viviam tão isolados do Ocidente cristão. Porém, ao contato com os portugueses, ela tomou novo vigor e a sua antiqüíssima liturgia foi oficialmente reconhecida pela Igreja, sob o nome de rito malabar.

Nas caravelas que cruzavam os oceanos ostentando em suas velas a Cruz de Cristo –– emblema da Ordem que em Portugal substitui a Ordem de Cavalaria dos Templários –– viajavam também abnegados sacerdotes, alguns dos quais vieram a ser mais tarde elevados à honra dos altares.

À frente dos primeiros missionários que se estabeleceram na Índia encontrava-se Frei Henrique de Coimbra, conhecido personagem de nossa História, por haver sido capelão da esquadra de Pedro Álvares Cabral, e ter celebrado a primeira Missa no Brasil.

Desse modo, ao lado do rito malabar revitalizado, o rito latino ali deitou profundas raízes naquela região, com o batismo de milhares de pagãos, daí resultando a constituição das primeiras dioceses e a construção de numerosas igrejas.

A província de Goa, situada na costa oeste da Índia, foi uma das primeiras regiões onde frutificou extraordinariamente a semente do Evangelho.

Algumas décadas mais tarde, lá chegava o grande missionário São Francisco Xavier, cujo corpo repousa ainda hoje no relicário do altar da Basílica do Bom Jesus, em Old Goa.

Faleceu este Santo jesuíta em 1552, quando se encontrava próximo à China, que pretendia visitar, após haver pregado em Málaca, nas Ilhas Molucas e no Japão.

Goa viria a receber o honroso título de Roma do Oriente. Nela não havia um quarteirão no qual não brilhasse a lamparina junto ao sacrário do Santíssimo Sacramento, tão numerosas eram suas igrejas e capelas.

Nessa atmosfera, em Sancoale, uma singela vila situada a 15 quilômetros de Pandjin, a atual capital de Goa, nascia, em 1661, numa família de alta casta, um menino que se tornou depois um ardente devoto da Santíssima Virgem e admirável homem de Deus.

Seu nome era José Vaz, e hoje seu processo de beatificação encontra-se em andamento.

Escravo de Maria

A formação católica recebida desde tenra infância por José Vaz em seu lar, foi aperfeiçoada mais tarde nos estudos realizados com os padres jesuítas e também dominicanos, que lhe transmitiram sólida formação doutrinária e pleno domínio das línguas latina e portuguesa.

A 5 de agosto de 1677, pouco tempo antes de se ordenar sacerdote, José Vaz teve um gesto de profundo significado: ajoelhado ante o altar da Virgem Santíssima, na igreja de Sancoale, proferiu ele a sua solene consagração à Santíssima Virgem, na condição de escravo. Para externá-la o quanto lhe era possível, assinou um documento especialmente preparado.

Escravo… palavra que designa a situação terrível de privação da liberdade humana, podendo causar por isso uma natural repulsa.

Não obstante, pode também ela ter um sentido sublime e elogioso quando se refere a um auge de dedicação e fidelidade a princípios bons e verdadeiros. É o caso, por exemplo, quando se diz que, renunciando a quaisquer interesses pessoais, um médico ou um militar tenha se sacrificado como escravo do dever.

Consideremos, ademais, o fato de que no cântico do Magnificat, conforme nos conta o Evangelho, a Santíssima Virgem proclamou solenemente: “Eis aqui a escrava do Senhor”. Essa forma de escravidão amorosa que Ela quis ter em relação a Deus, inspirou vários santos, entre os quais Santo Odilon, Abade de Cluny, como também numerosas almas piedosas, a adotar em relação a Nossa Senhora uma forma análoga de dependência espiritual.

Convém ressaltar que, em seu célebre Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem,escrito em 1713, o grande apóstolo mariano francês, São Luís Maria Grignion de Montfort, recomenda, com sólida fundamentação teológica, a prática da escravidão a Nossa Senhora. Tal escravidão a Maria, segundo ele, imita a submissão do próprio Cristo, que a Ela foi inteiramente obediente, desde a infância até o momento de iniciar sua vida pública.

A consagração feita pelo Pe. José Vaz, como escravo de Maria, teve um aspecto especial, qual seja, o de ultrapassar o âmbito restrito de sua piedade pessoal, ou de seus contemporâneos, para passar à História, sendo desse modo lembrada pelas gerações que vêm se sucedendo ao longo dos séculos.

Assim, na fachada da igreja de Nossa Senhora da Saúde, de Sancoale, em cujo altar-mor o Pe. José Vaz formulou tal consagração, uma placa registra o fato. Além disso, denomina-se Rua Escravo de Maria a travessa que lhe dá acesso.

Infelizmente, a nave e o presbitério dessa igreja foram destruídos por ocasião de um violento incêndio, em 1834, restando apenas, devidamente conservada, sua bela fachada.

Na estrada que corta Sancoale, placas de sinalização rodoviária, indicam o acesso à histórica Rua Escravo de Maria.

Nessas placas é conservada a designação em português, idioma ainda falado por muitos de seus habitantes, pois, como se sabe, somente em 1961 Goa se tornou independente de Portugal.

Socorro à Igreja perseguida

Após exercer por algum tempo seu apostolado sacerdotal na região do bravio Kanara, no sul do continente indiano, o Pe. Vaz retornou a Goa, onde fundou o ramo indiano dos Oratorianos, congregação devotada à formação de missionários, fundada por São Felipe Neri.

Da grande ilha do Ceilão, entretanto, chegavam notícias dolorosas. Há mais de duas décadas dezenas de milhares de católicos ali viviam em regime catacumbal, devido à perseguição movida por calvinistas holandeses. Estes, ao se estabelecerem no país, expulsaram todos os sacerdotes, punindo com a morte qualquer forma de prática da Fé Católica.

O que sobrara da florescente cristandade no Ceilão, cujas sementes haviam sido lançadas por São Francisco Xavier?

Por quanto tempo a chama da Fé ainda continuaria a arder naquelas almas?

Estas perguntas tocavam a fundo o zelo apostólico do Pe. Vaz, e por isso, generosamente, decidiu ele ir pessoalmente auxiliá-las. A missão mais premente era, a seu ver, dar plena assistência aos fiéis perseguidos, de modo a afervorá-los. E como conseqüência, a conversão de infiéis daí resultaria normalmente.

A presença de um sacerdote católico no Ceilão importava em gravíssimos riscos, os quais, entretanto, em nada abalaram sua decisão.

Após haver estudado os idiomas que se falavam no Ceilão, em março de 1686, com a necessária permissão do Arcebispo de Goa, o Pe. Vaz dirigiu-se para a região de Kanare, a fim de partir discretamente rumo a seu destino. Aos portos de Kanare vinham barcos da mencionada ilha, e seria possível ao missionário ali embarcar. Acompanhava-o, desde então, o jovem João Kundbi, que anteriormente trabalhava na propriedade rural da família Vaz, em Sancoale, e que depois tornou-se também sacerdote.

Sob disfarce

Disfarçaram-se o Pe. Vaz e seu acompanhante como escravos, trajando uma rústica túnica, e trazendo o Terço ao pescoço, o qual aparentava ser um simples colar de contas, de uso comum entre hindus. E num saco levavam escondidas as vestes sacerdotais, vasos sagrados, hóstias, vinho e tudo o mais que a missão requeria.

Ao se apresentarem no porto para embarcar, o funcionário holandês encarregado de fiscalizar os viajantes suspeitou de algo e excluiu-os da viagem.

Este obstáculo foi rapidamente superado: o funcionário faleceu logo em seguida, e seu substituto deu-lhes livre trânsito.

Porém, outras dificuldades, outras cruzes, freqüentes na vida apostólica, não deixaram de se suceder continuamente.

A viagem, que normalmente levaria quatro dias, acabou durando três semanas, devido a tempestades. Depois de aportarem na ilha de Manaar, o Pe. Vaz e seu criado seguiram para Jaffna, a capital do reino. Aí foram acometidos por uma grave epidemia, sendo socorridos por uma pobre mulher que os encontrou prostrados e desabrigados, à beira da morte.

O apostolado

Logo que recuperou a saúde, empenhou-se o Pe. Vaz em localizar, sem chamar a atenção dos calvinistas, as famílias católicas que permaneciam fiéis às escondidas.

O missionário passou então a oferecer de casa em casa seus serviços de jardinagem e trabalhos do gênero, ao mesmo tempo em que observava atentamente o comportamento das famílias para detectar este ou aquele traço que deixasse transparecer sua Fé católica.

Certo dia, aquele jardineiro aparentemente comum dirigiu a uma rica senhora a sua pergunta capital: “A senhora deseja a assistência de um Padre católico?” –– A resposta foi: “Sim”. Estavam abertas as portas da Igreja do Silêncio, cuja organização havia sido orientada pelos missionários jesuítas que deixaram uma rede de catequistas, que ministravam batizados e casamentos. Com o passar do tempo, apenas os catequistas se conheciam entre si, para proteger o conjunto dos católicos contra denúncias de eventuais apóstatas aos perseguidores.

A partir de então, contornando com desenvoltura todos os obstáculos, o trabalho do Pe. Vaz desenvolveu-se enormemente. Recolhido a seus aposentos durante o dia, passava a noite celebrando Missas, ouvindo confissões e dando assistência a seus fiéis, muitos dos quais jamais haviam visto um sacerdote.

A Cruz volta a brilhar

No Natal de 1689, os holandeses, tendo notícia de seu apostolado, invadiram a mansão onde seria celebrada a Santa Missa, mas nada fizeram contra o Pe. Vaz, que, para eles, tornara-se invisível. Em situação análoga, noutra ocasião, a própria Santíssima Virgem se fez presente no recinto onde os perseguidores procuravam o Pe. Vaz, obrigando a estes que se retirassem e nada fizessem contra os católicos.

Certa vez, ao viajar pelo interior, o Pe. Vaz e sua comitiva estavam prestes a ser atacados por elefantes. Entretanto, quando a situação parecia perdida, os imensos paquidermes surpreendentemente interromperam a investida e se ajoelharam em reverência ao homem de Deus.

No reino de Kandy, por ocasião de uma grave epidemia, o Pe. Vaz se devotou à assistência espiritual e também material dos doentes, evocando a figura evangélica do Bom Samaritano, suscitando numerosas conversões de pagãos, como também a benevolência do monarca.

Durante uma terrível seca que assolava a região de Kandy, o monarca recomendou ao Pe. Vaz suas orações, suplicando a tão esperada chuva, depois de tê-la esperado, sem sucesso, da oração dos monges budistas. Para atendê-lo, o Pe. Vaz celebrou a Santa Missa junto a uma grande Cruz ao ar livre, sendo necessário que a assistência se dispersasse logo em seguida, devido a um forte aguaceiro que começou a cair.

Após esse milagre, foi obtida do Rei a liberdade para pregação do Evangelho, tendo o Pe. Vaz imediatamente solicitado a vinda de outros missionários de Goa para ajudá-lo.

Subindo ao trono um novo monarca, quis este manifestar sua gratidão e simpatia ao Pe. José Vaz. Para tal, quando seu séqüito se dirigia em cortejo para o palácio, ele fez parar seu elefante e, do alto do mesmo, saudou com veneração o missionário que, já idoso, veio à porta de sua residência.

Pouco antes de falecer, a 15 de janeiro de 1711, ao ver o Evangelho florescer novamente no Ceilão, o Pe. Vaz poderia dizer, como o velho Simeão diante do Menino Jesus no Templo: “Agora, Senhor, podeis levar este vosso servo!”

Vinte e cinco anos haviam transcorrido desde que o ardoroso Pe. José Vaz chegara ao Ceilão. Como escravo, sim. Mas sobretudo, escravo de Maria, disposto aos mais ousados lances, com vistas a conquistar almas para o Reino de Cristo no Ceilão.

Consagração do Pe. José Vaz, como Escravo
Saibam quantos esta carta de cativeiro virem, os anjos, os homens, e todas as criaturas, como eu o Padre José Vaz, me vendo, e entrego por escravo perpétuo da Virgem Mãe de Deus por doação livre, espontânea e perfeita, que o direito chama irrevogável entre os vivos, a minha pessoa, e bens, para que de mim, e deles disponha à sua vontade, como verdadeira Senhora minha; e porque me acho indigno desta honra, suplico ao anjo da minha guarda, e ao glorioso Patriarca São José, esposo amantíssimo desta Soberana Senhora, e santo do meu nome, e aos mais cidadãos celestiais, alcancem d’Ela, que me receba no número de seus escravos: e por ser verdade, a firmo do meu nome, e quisera firmar com o sangue do meu coração. Feita na igreja de Sancoale, ao pé do altar da mesma Virgem Maria Mãe de Deus, Senhora da Saúde, hoje, cinco de agosto, dia da festa da mesma Senhora das Neves, de seiscentos e setenta e sete.
José Vaz

Obras consultadas:

  1. Antonio Mascarenhas,Padre José Vaz – The hero of a christian Epic in Sri Lanka,A Mirator Edition, Goa.

2. São Luis Maria Grignion de Montfort, Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem, Editora Vozes, Petrópolis, 1980.

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