São Gregório VII

O Imperador alemão Henrique IV aos pés de São Gregório VII

À direita da nave central da Catedral de Salerno (século XI) encontra-se a Capela dos Cruzados. Lá não mais comparecem os cruzados para fazer sua vigília de armas. Sob o altar de pedra tosca está o túmulo de São Gregório VII. Atualmente, quem visita o local percebe ali um ambiente de solidão, uma penumbra cheia de recolhimento, impregnada de oração. E a recordação do grande Papa, marco na História da Igreja e da Cristandade, inspirador de Cruzadas, suscita admiração e enlevo nos visitantes daquele abençoado lugar.

Da calma do mosteiro às lutas em Roma

Hildebrando — futuro Papa São Gregório VII — era monge na célebre abadia de Cluny, na França, na época em que São Hugo dirigia como abade esse extraordinário mosteiro, onde o espírito feudal encontrou seu pleno equilíbrio católico.

Em 1049, ali foi procurá-lo Mons. Brunon, Bispo de Toul, que havia sido nomeado Papa por seu parente, o Imperador Henrique III. Tal  método de designação de um Papa, ainda válido então, havia se tornado abusivo. Brunon, como Sumo Pontífice, adotou o nome de Leão IX. Levou o monge Hildebrando consigo para Roma e nomeou-o arquidiácono, primeira dignidade do Sacro Colégio de Cardeais e administrador da Santa Igreja. Iniciava-se assim um longo combate, de muitos anos de duração, daquele  que talvez tenha sido o maior dos Papas da História.

Filho de um pequeno proprietário de terras, Hildebrando nasceu na diocese de Soana, na Toscana, entre os anos de 1020 e 1025. Em 1045 entrou em cena ao ser nomeado capelão do Papa Gregório VI. O estado de decadência em que se encontrava a Igreja o fazia sofrer, ao mesmo tempo que aumentava sua disposição e seu ânimo para uma autêntica luta.

A esse propósito, assim escreveu o Abade São Hugo, de Cluny: “Gostaria de vos tornar compreensivas as tribulações que me acometem e os cuidados incessantes que me afligem cada vez mais. Pedi muitas vezes ao Divino Salvador que me tirasse deste mundo. Ou então, que me desse as graças para servir como devo à Santa Igreja. Vendo a Igreja do Oriente separada da Fé católica pelo espírito das trevas, sinto uma dor que não posso exprimir e uma profunda tristeza que invade minha alma. Procuro observar o Ocidente, o sul e o norte. Difícil encontrar alguns sacerdotes que chegaram ao episcopado pelas vias canônicas, levando vida conveniente e governando seu rebanho no espírito de caridade[…]. Entre os príncipes seculares, não conheço quem prefira a glória de Deus à sua própria glória, a justiça ao interesse. Romanos, lombardos e normandos, entre os quais vivo, são piores do que os judeus e pagãos[…]. Se não tivesse esperanças em melhores tempos e em ser útil à Igreja, não me conservaria mais tempo em Roma, onde estou, Deus o sabe, como preso há vinte anos, entre uma dor que se renova quotidianamente e uma esperança muito longínqua! Acometido por mil tempestades, minha vida é uma agonia continuada.”1

Contra investidura em cargos eclesiásticos

Um dos maiores perigos que naquele tempo a Igreja teve que enfrentar foi a chamada luta das investiduras. Na instituição feudal, a investidura consistia numa cerimônia durante a qual o senhor concedia simbolicamente o feudo ao vassalo. Neste ato, entregava-lhe um objeto simbólico: um punhado de terra do feudo e um ramo. No caso de serem terras eclesiásticas, entregava o báculo ou o anel. Em conseqüência, o vassalo ficava vestido do feudo que recebia, adquirindo sobre ele um direito que compartilhava com o senhor. Após a investidura, realizava-se o juramento de fidelidade e a homenagem do vassalo ao senhor.2

O problema se colocava nas grandes propriedades de terras que a Igreja possuía. Com efeito, durante séculos Ela havia recebido numerosas doações de terras. E os bispos e abades de toda a Europa administravam tais propriedades como grandes senhores feudais. Surgia, assim, o problema político da relação temporal entre o rei e o bispo ou o abade, como proprietário de terras. Era natural que o rei exigisse uma certa sujeição temporal do bispo, enquanto senhor de grandes domínios dentro do reino. Mas, pouco a pouco, para  assegurar essa fidelidade, os imperadores passaram a nomear leigos de sua confiança para os grandes feudos eclesiásticos. O imperador então osinvestia do anel e do báculo. Não apenas lhes outorgava a terra como feudo, mas também decidia quem seria sagrado bispo. Em vista disso, geralmente os candidatos às abadias e aos bispados não eram eclesiásticos, mas simples leigos, que pagavam ao imperador enormes somas pela investidura. A autoridade jurídica da Igreja sobre os clérigos assim nomeados se perdia, porque eles ficavam sujeitos à autoridade civil. A investidura laica tornou-se, pouco a pouco, um fato consumado que era necessário erradicar, sob pena de a Igreja perder sua independência.

E ainda, para piorar as coisas, os bispos assim nomeados pelo imperador pretendiam que seu cargo se transmitisse por herança à sua família. Para isso, procuravam ter descendência. E, em conseqüência, não respeitavam o celibato, que havia séculos já estabelecera na Igreja do Ocidente.

Foi a partir dos imperadores saxões e sálicos (Otos e Henriques, com exceção de Santo Henrique II) que o problema se tornou mais agudo. Roma passou a ser considerada apenas como uma diocese a mais.3

Vigoroso e autêntico reformador da Igreja

Campanários (séc. XI e XII) da famosa Abadia de Cluny, onde São Gregório VII foi monge

Desde sua chegada a Roma com o Papa São Leão IX, Hildebrando empenhou-se na luta com o máximo ardor, mas ao mesmo tempo com prudência cheia de sabedoria. Antes de enfrentar o imperador, era necessário reformar a hierarquia eclesiástica, infestada pela simonia (venda dos bens eclesiásticos) e pelo nicolaísmo (heresia que, ademais, sustentava que os sacerdotes poderiam se casar).

Muitos bispos sujeitaram-se às ordens procedentes dos chamados Papas gregorianos. Outros, porém, especialmente muitos alemães e da Lombardia (norte da Itália), resistiram violentamente, apoiando-se no imperador alemão, de quem recebiam as dioceses como feudo. Na Lombardia, convém ressaltar, o Papado encontrou heróicos colaboradores.

Em Milão, principal cidade da Lombardia, os católicos fervorosos organizaram uma associação combativa conhecida como Pataria. Dois de seus líderes foram santos, Santo Arialdo e Santo Eslembaldo, enquanto seu fundador, o Papa Alexandre II, foi o antecessor imediato do monge Hildebrando no trono pontifício. São Pedro Damião foi um dos maiores sustentáculos da Pataria.

Novo Papa impõe arduamente sua autoridade

Os momentos auges do enfrentamento do Papado contra os abusos paganizantes do Império coincidem com a ascensão de Hildebrando ao trono pontifício, em 1073. O novo Pontífice não tardou em dar um primeiro passo decisivo. No Concílio de Roma (Quaresma de 1074), o Papa decretou que todo simoníaco e todo nicolaíta seria excomungado se não renunciasse ao cargo ilegitimamente adquirido, ou à mulher com quem vivesse contrariamente à lei canônica. O clero alemão protestou e resistiu, enquanto Henrique IV por algum tempo simulou submeter-se. Em outro Concílio, no ano de 1075, o Papa excomungou vários bispos alemães. É durante este primeiro enfrentamento que a doutrina de São Gregório VII se define. O Papa escreve seu famoso Dictatus Papae, no qual estão resumidos os princípios da autoridade papal:

1– a Igreja é de origem divina;

2– o Papa tem todos os direitos sobre os bispos;

3– o Papa é o juiz de todos, não é julgado por ninguém. Ata e desata,pode desligar os vassalos do juramento de fidelidade feito a seus suseranos;

4– fica afirmada, pela primeira vez, a monarquia papal, a subordinação do poder civil ao pontifício em temas de doutrina e moral.

Enfrentamento com o Imperador Henrique IV

A crise produziu-se durante o reinado do tirânico Henrique IV. Este, já aos 25 anos, era um déspota cheio de vícios e odiado por seus vassalos. Além disso, havia-se entregado a todos os excessos no tráfico das dignidades eclesiásticas. Ao subir ao trono pontifício, em 1073, São Gregório VII já o havia advertido de que teria de reprimir seus excessos. Numa carta que havia escrito a Godofredo, um dos grandes senhores alemães, lemos: “Não cedo a ninguém em zelo pela glória presente e futura do imperador. E na primeira ocasião que tiver, hei de fazer-lhe admoestações caritativas e paternas. Se me atender, terei tanto júbilo pela sua salvação como pela minha própria. Se pagar com ódio o interesse que tenho por ele, Deus me livre da ameaça que Ele faz dizendo: ‘Maldito seja o homem que se recusa a banhar a espada em sangue!’”.

Henrique IV toma inteiramente partido dos bispos excomungados. Organiza um atentado contra São Gregório VII, nomeia um antipapa e, no conciliábulo de Worms, pretende destituir o Papa. Em 1076, o Santo Pontífice dá o golpe decisivo: depõe e excomunga Henrique IV com um anátema.

Era tal o prestígio do Papa, que toda a Alemanha e o Império voltaram-se contra o Imperador excomungado. Este vê-se forçado a pedir perdão. Segue-se então a famosa cena do castelo de Canossa, onde São Gregório VII, refugiado nos domínios da Condessa Matilde, obriga o péssimo Imperador a esperar três dias e três noites sob a neve, para ser recebido e lhe pedir perdão. Perdão que o Papa concede, contra sua vontade, pressionado por seus mais íntimos colaboradores.

Pois bem, apenas voltou ao poder, Henrique IV recomeçou a trair o Sumo Pontífice e a combatê-lo.

O Papa excomunga e depõe Henrique IV pela segunda vez em 1080. Mas, então, o imperador consegue manter-se no poder e se coloca contra Roma, nomeando um antipapa. São Gregório VII refugia-se no Castelo de Santo Ângelo, em Roma.

“Amei a justiça e odiei a iniqüidade”

Os normandos acodem a Roma para socorrer o Papa. Mas é um auxílio interesseiro, pois eles querem apoderar-se do Sumo Pontífice para antepô-lo ao Imperador. E comportam-se em Roma como invasores bárbaros. São Gregório VII retira-se com eles para Salermo, a fim de evitar piores males para a capital da Cristandade. Naquela cidade é mantido mais ou menos prisioneiro pelos normandos.

Afligido por aquela aparente derrota, após uma luta de toda sua vida, o Papa morre em 25 de maio de 1086, exclamando: “Amei a justiça e odiei a iniqüidade, por isso morro no exílio”. Estas palavras sublimes recordam-nos aquelas outras, divinas: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?”. Talvez se possam aproximar ambas as expressões, porque é na aparente derrota de uma causa que se produzem as maiores vitórias.

Com efeito, menos de 30 anos depois, na Concordata de Worms, em 1122, os senhores feudais leigos e religiosos, impõem ao Imperador Henrique V, filho de Henrique IV, o abandono das investiduras do anel e do báculo, e também aceitar a liberdade das eleições canônicas. Em 1095, o Beato Urbano II, Papa gregoriano ardoroso defensor das reformas propugnadas por seu grande antecessor, convoca a Primeira Cruzada. Por fim, devemos recordar que Inocêncio III, no século XIII, que explicita a teoria das duas espadas (a espiritual e a temporal), continuador da obra de São Gregório VII, é considerado o Papa que levou o poder e a glória da Igreja ao seu ápice.

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Notas:

1– Cesar Cantù, História Universal, Editora das Américas, 1955, São Paulo, tomo XII, p. 401.

2– Ganshof, Que é o feudalismo, Publicações Europa–América, Lisboa,1959, p. 161.

3– Cfr. Geoffrey Barraclough, Studies in Medioeval History.

Artigo oferecido pela Revista Catolicismo

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