Fatores providenciais para o Descobrimento do Brasil

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No plano científico a Escola de Pilotos de Sagres e no campo econômico a rica Ordem de Cristo ofereceram condições para o que seria realizado décadas após, pela esquadra de Cabral: o descobrimento da Terra de Santa Cruz.

Cinqüenta léguas ao sul das Canárias, o Cabo Bojador projeta-se da costa estéril no mar deserto. Era aqui o termo do mundo medieval – o limite além do qual a nenhum navio era permitido navegar. Passar o Cabo Bojador, concordavam os marinheiros, seria simplesmente tentar o desastre.”[i]

O Infante D. Henrique, o Navegador, contrapondo vários argumentos a essa crença, durante 12 anos – de 1421 a 1433 – enviou navios regularmente, com ordem de ultrapassar o Cabo Bojador.

Às várias expedições que voltavam sem êxito, ele sempre dizia: “Voltai – voltai e ide mais longe!

Em 1433, depois de nova insistência de D. Henrique, Gil Eanes, de Lagos, revestiu-se de coragem e jurou que dessa vez não voltaria sem êxito. Passados os meses, ele voltou com o fulgor do triunfo no olhar, e com um punhado de ervas murchas na mão. Sim, tinha dobrado o cabo Bojador! Não custara nada. Encontrara mar calmo junto à costa africana e a praia era só areia. A única coisa viva junto daquela costa desolada eram algumas plantinhas rasteiras, cujos restos secos apresentava ao Infante.

Para prosseguir nos descobrimentos era necessário uma revisão completa da ciência da navegação. O processo antigo da navegação de cabotagem, realizada próximo à costa e orientando-se pelos pontos de referência ao longo dela, fora adequado às viagens num mar interior como o Mediterrâneo. As viagens costeiras do Atlântico eram impraticáveis devido aos ventos e às correntes. Os pilotos de D. Henrique precisavam aprender a internar-se num mar imenso, dias e semanas seguidos, sem se deixarem perder entre o céu e o mar.

A resposta a esse problema estava escrita nos céus. Os navegantes precisavam aprender a  determinar a posição de sua “casca de noz” no espaço marítimo. A bússola, o astrolábio e o quadrante já eram conhecidos. D. Henrique, com os matemáticos e astrônomos reunidos à sua volta, estudou como esses instrumentos poderiam ser aperfeiçoados, simplificados e adaptados à navegação marítima.

Muito se tem dito e escrito a respeito da Escola de Pilotos de Sagres. A verdade é que D. Henrique não fundou uma escola regular, mas a sua corte parecia um congresso de técnicos em sessão permanente. O Infante, enquanto viveu, juntou homens de ciências à sua roda e nunca lhe foi difícil atraí-los. Ele trabalhava até altas horas com uma companhia cosmopolita de físicos e de cosmógrafos. Um dos seus principais colaboradores foi o célebre Jaime de Maiorca, judeu convertido ao catolicismo.

Ele reuniu no promontório de Sagres, na parte mais ocidental de Portugal, “lá onde acaba a terra e começa o mar” (Camões,  Os Lusíadas,54), os maiores especialistas em navegação, cartografia, astronomia, geografia e construção naval.

O inédito das caravelas portuguesas

Outra necessidade das navegações no Atlântico era um novo tipo de embarcação. Foi nos estaleiros de D. Henrique que se planejou a caravela. Ela era rápida, leve e de fácil manobra. Robusta, para poder enfrentar mar alto e tempo ruim; pequena, para explorar litorais; capaz de navegar com ventos contrários, era dotada de espaço para carregar suprimentos em longas viagens, além de estável e controlada por tripulações pequenas.

Podia costear as praias perigosas e navegar em mares rasos. As mais antigas caravelas utilizavam apenas velas quadradas, fáceis de manejar, mas inadequadas para enfrentar ventos fortes. Com o tempo, foi adotado o uso combinado de velas redondas (que só permitiam viagens com vento de popa) e  latinas (triangulares, para velejar com vento lateral, que aproveitavam qualquer direção do vento, a mais leve brisa, enfrentavam os ventos fortes, podendo até navegar contra eles), feito considerado como superior aos conhecimentos náuticos da época.

Sigilo protege as invenções das caravelas

  A caravela, utilizada em Portugal desde 1442 como navio típico e exclusivo dos Descobrimentos, foi uma conquista técnica dos portugueses. Era lógico, pois, que os lusos se reservassem a exclusividade de sua utilização e proibissem a sua venda para estrangeiros. Aproveitando-se das boas relações de família, os Reis Católicos de Espanha pediram e obtiveram, com freqüência, permissão para comprar caravelas em Portugal. As Ordenações Manuelinas assim legislavam:“Mandamos e defendemos que nenhuma pessoa de qualquer condição que seja não venda aos estrangeiros caravelas; … nem as vá lá fazer ao estrangeiro”.[ii]

Outra descoberta lusa: o nó, medida marítima

A unidade de velocidade marítima usada ainda hoje – o nó – foi inventada pelos portugueses, com base em um método engenhoso. Os nós originais eram dados numa corda, a distâncias equivalentes ao comprimento do casco de um navio. Em alto-mar, amarrava-se a corda a um barquinho, que era lançado ao mar. Um marinheiro ficava na amurada, com uma ampulheta na mão. Como não tinha velas, o barquinho ficava parado enquanto o navio se afastava e a corda ia se desenrolando. Pelo número de nós era possível saber a distância percorrida com relação à miniatura. A ampulheta informava o tempo gasto no percurso. A medida, chamada até hoje nó marítimo, corresponde a 1,8 quilômetro por hora.[iii]

Ordem de Cristo: jurisdição espiritual sobre terras descobertas

No mesmo ano de 1433, do outro lado da África, o almirante chinês Zhen He chegava até a costa de Moçambique, com uma esquadra de 315 navios. Os chineses possuíam uma civilização milenar, com os conhecimentos técnicos muito mais avançados do que os europeus. Estes últimos, na época, ainda estavam engatinhando nos conhecimentos técnicos. Mas a razão iluminada pela Fé produz maravilhas. Comparados às caravelas, os navios de Zhen He eram verdadeiros transatlânticos. O maior deles tinha 135 metros, enquanto a caravela era um barco de apenas 20 metros.

Mas por que a poderosa China não descobriu o caminho para Portugal?

Os historiadores imparciais, sem as visões materialistas e marxistas, resumem numa trilogia e na seguinte ordem de valor os três grandes motivos dos descobrimentos portugueses: Deus, o Rei e o Ouro.

Deus – o motivo religioso: a expansão da Fé entre os gentios, a continuação da Cruzada contra os mouros.

Rei – o motivo político: o desejo de expansão de Portugal.

Ouro – o motivo econômico: a conquista de novos mercados, o rico comércio das especiarias e a descoberta de jazidas de ouro.

Em D. Henrique, o Navegador, essas motivações são claramente encarnadas. A conquista de Ceuta tinha como objetivo combater os mouros. Já quanto aos povos mais primitivos, ao sul do Cabo Bojador, ele esperava convertê-los ao cristianismo. A bondade era muito mais persuasiva e os primeiros contatos amistosos poderiam travar-se a respeito de coisas materiais. O negociante podia abrir o caminho e o missionário seguiria atrás.

Tendo em vista esses altos ideais, D. Henrique mandou um enviado ao Papa com as seguintes propostas: Sua Santidade dignar-se-ia conceder à Coroa de Portugal as terras que os portugueses descobrissem? A Ordem de Cristo poderia ficar com a jurisdição espiritual sobre elas e Sua Santidade poderia conceder as indulgências atribuídas aos cruzados àqueles que fossem mortos em terras muçulmanas ou pagãs? O Papa Eugênio IV mandou uma Bula concedendo tudo quanto D. Henrique pedira.

O Infante D. Henrique era o governador da opulenta Ordem de Cristo, que herdara as riquezas da Ordem dos Templários em Portugal. Ele dispunha de grandes recursos, e, como administrador, não podiam acusá-lo de incompetência. Por muito estranho que pareça, esse observador das estrelas era dotado de considerável tino para os negócios; e a empresa em que se metesse alcançava êxito financeiro.

Entretanto, o mar –  construção naval, armação de navios, reparação das naves, remuneração dos navegantes, pensão das suas viúvas etc. – absorvia a maior parte dessas riquezas. Não havia fortuna que resistisse a tal sangria. A Coroa teve que ir em socorro do Infante, mas nem isso foi suficiente para equilibrar suas finanças, tendo ele morrido endividado.

D. Henrique deixou assim lançadas as bases para, no dia 22 de abril de 1500, as naus que pertenciam à Ordem de Cristo, tendo em suas velas a Cruz de Cristo e sob o comando de Pedro Álvares Cabral, aportarem à Terra de Santa Cruz.


Notas
[i] Elaine Sanceau D. Henrique, o Navegador. Editora Livraria Civilização, Porto, 1988

[ii]Ordenações de D. Manuel, 1.5., título LXXXVIII.

[iii]Pablo Nogueira . O gênio português. Novos estudos mostram como avanços na tecnologia permitiram os descobrimentos . Revista “Veja”, S. Paulo, 3/11/99 p. 80.

Fontes de referência:
Luiz Filipe Barreto, Os descobrimentos e a Ordem do saber. Gradiva, Lisboa, 1989.

Elaine Sanceau, op. cit.

Jaime Cortesão, A Política de Sigilo nos Descobrimentos. Editora Comissão Executiva das Comemorações da Morte do Infante D. Henrique, Lisboa, 1960.

Fernand Braudel, A difusão das técnicas: revoluções e atrasos, in Civilização material e capitalismo. Lisboa, Cosmos, 1987.

Luiz Carlos Figueiredo e Janaína Amado, No tempo das caravelas. SP/Goiânia, Editoras Contexto e da UFG, 1992.

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1 COMENTÁRIO

  1. Este artigo satisfez a minha curiosidade sobre o I. da Sagres e
    as caravelas, embracações que possibilitaram rapidez na navegação
    que dizem de 12 nós, ´que é uma boa velocidade, meu barco viaja
    a 5 0u 6 nós.

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