Igualitarismo – a religião que o século XX adotou

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Na majestosa galeria dos séculos que se foram, o século atual vai figurar como “o igualitário”

Dentro de um muito curto espaço de tempo, o tão glorificado século XX vai ser “o século passado”. Salvas sem fim de fogos de artifício saudarão a nova centúria e milênio.

Ao mesmo tempo, soa a hora da verdade. Como é natural, muitos espíritos, num saudável exercício de análise, vão se debruçar sobre estes 100 anos, e perguntar de que valeram.

Nossa época, como qualquer época da História, pode ser julgada, entre outras coisas, através do tipo humano que gerou. De pouco adianta conquistar a lua e todas as estrelas, desvendar o micro-universo do átomo, efetuar todas as proezas da tecnociência, atingir um grau de enriquecimento prodigioso numa estabilidade econômica completa, se ao mesmo tempo o tipo humano entrar em visível decadência. Pois o que interessa sobretudo ao homem, abaixo de Deus, é o próprio homem.

Vamos imaginar que em 100 anos os homens, atingidos por uma enfermidade desconhecida, viessem a se tornar anões. Que decepção! Por mais que as conquistas da ciência e o desempenho da economia fossem expressivos, esse século ficaria marcado como catastrófico.

Felizmente, no século XX isso não ocorreu, no aspecto físico. Que dizer da alma humana e da personalidade? É a pergunta.

Vou, “a vôo de pássaro”, analisar o futuro século passado do ponto de vista do tipo humano que ele engendrou.

“Belle époque”, “ouverture” que se transformou em “finale”

Estes 100 anos  iniciaram-se de forma promissora. A Belle Époque não foi uma época sem defeitos. Mas se notava, na juventude de então, um vento de idealismo e de talento, uma tal ou qual tendência ao cavalheirismo, à firmeza de princípios, ao heroísmo, à nobreza de sentimentos.

As trincheiras da I Grande Guerra dizimaram a mocidade européia. Ao mesmo tempo, a influência avassaladora da way-of-life americana, isto é, o modo de vida adotado nos Estados Unidos, consagrada pela vitória militar dos aliados, e tomada especialmente em seus aspectos hollywoodianos, a saber, inspirados nos estilos difundidos pelos filmes de Hollywood, operava uma espécie de Revolução Cultural, abalando a civilização tradicional do Velho Mundo.

As promessas do início do século foram afogadas em um banho de sangue, e simultaneamente – perdoem os leitores a trivialidade da expressão – em um “banho de coca-cola”, ou seja, na força dissolvente dos novos costumes (1).

Mesmo assim e apesar de tudo, a chama de idealismo cavalheiresco não morrera de todo. Era necessário extinguir aqueles vestígios que ainda incomodavam a Revolução universal. O nazi-fascismo apareceu para empolgar e precipitar no vazio o que deles ainda restava.

De seu lado, o comunismo operou uma ainda mais desastrosa modificação no tipo humano – modelando um ente humano ateu, massificado, anódino e embrutecido-, a qual perdura até hoje nos locais onde dominou, sobretudo na Rússia (2).

Terminada a II Guerra Mundial, desencadeia-se o processo cujas principais fases se podem observar no quadro ao lado. Ele desfecha na eclosão do tipo humano que se convencionou chamar de pós-moderno.

O tipo humano pós-moderno

Voltado cada vez mais para dentro de si mesmo, carente do senso da sociedade, o homem pós-moderno afunda no vazio. No prazer de ser um qualquer.

A vida pós-moderna apresenta ao homem três elementos principais para preencher o imenso e lúgubre vazio de hoje: 1) a saturação informativa; 2) o frenético consumo ao modo pós-moderno (nota 2 BIS); 3) a sedução da mais desbragada imoralidade. Os três fatores o enchem, se assim se pode dizer, de vazio.

O homem contemporâneo vai, assim, cada vez mais se minimizando, se miniaturizando. Tudo torna-se pequeno, acanhado, agachado, sem grandeza. Ele tende a ser a raiz quadrada do homem do início do século.

Totalmente dominado pelas pequenas delícias, ele torna-se apático. “Cada qual vive em um bunker de indiferença”, diz um autor (3).

Ocorreu uma miniaturização do desejo humano. Qualquer quinquilharia produzida pela tecnociência já preenche suas perspectivas. Muitas vezes, aquilo que reluz num shopping-center basta para saciar sua capacidade de desejar. Suas micro-aspirações satisfazem-se inteiramente com micro-objetos.

Para o homem pós-moderno quase só existem duas coisas: o “eu” e o “agora”.

É curioso, mas a mídia quase não aborda tal fenômeno. Entretanto, no mundo das idéias e dos livros muito se tem escrito sobre o tema. Os títulos de algumas obras deixam filtrar seu conteúdo: A escalada da insignificância, de Castoriades; A  era do vazio, de Gilles Lipovetsky; A derrota do pensamento, de  Alain Finkielkraut, A morte do social, de Jean Baudrillard…

Entre os autores católicos, podemos encontrar teses semelhantes por exemplo em A civilização da acédia, do jesuíta Pe. Horacio Bojorge.

Nos livros e na realidade, o homem vai sendo cada vez menos o que sempre foi. Alguns autores usam a palavra zumbi. Diz-se homo psychologicus (mergulhado na própria psicologia); homo clausus (fechado em si); homo aequalis (homem igualitarizado, se assim se pudesse dizer). Mas não se fala quase mais em homo sapiens!

Com evidente mas expressivo exagero, chega-se a falar em mutação antropológica (4). De certa forma, o homem não é mais o mesmo; mas como ele foi se transformando aos poucos, muitos nada percebem.

Zero é igual a zero

Reduzida a natureza humana à menor expressão, a conseqüência lógica é o achatamento de todas as diferenças entre os homens. Vejamos alguns exemplos.

A palavra unissex, tão corrente, mostra a tendência à fusão dos sexos, quanto o permita a natureza. Chegar ao meio termo em todos os campos é a grande obsessão.

Do ponto de vista racial, a ONU fala em promover “o homem bege”, ou seja, a média cromática entre o branco, o preto, o vermelho e o amarelo. O homem arroga-se assim o direito de corrigir o que considera um erro da natureza… Ora, a natureza é uma obra de Deus. Corrigir a natureza significa tentar corrigir o próprio Deus!

Também vão diminuindo cada vez mais as diferenças entre pais e filhos, bastardos e filhos legítimos, esposas e concubinas, mães de família e prostitutas, homens normais e tarados, bêbados e sóbrios, professores e alunos, padres e leigos, patrões e empregados, ricos e pobres, bem educados e cafajestes, índios e caras-pálidas, civilizados e bárbaros. Numa outra ordem de coisas, entre história e devaneio, fato e versão, realidade e ficção, música e ruído, obras de arte e brincadeiras de mau gosto, quando não verdadeiras aberrações do ponto de vista artístico.

Escrevem-se livros para mostrar que a sanidade mental é um conceito relativo; os loucos, eufemisticamente designados como usuários de serviços psiquiátricos, seriam pessoas normais, tendo apenas algumas pequenas manias ou uma concepção da vida diversa da dos outros.

Até as mais óbvias entre as diferenças, ou seja, as existentes entre os homens e os bichos, vão se amortecendo. Fala-se cada vez mais em direitos dos animais, constroem-se hotéis para gatos, escovam-se os dentes de cachorros (5).

Como diz Fredric Jameson, assistimos a uma formidável erosão dos contornos (6). Ora, essa erosão dos contornos atinge o homem em seu cerne, em sua personalidade, transformando-o quase num semi-homem.

Pense comigo, leitor. É uma lei da natureza que tudo aquilo que se desenvolve se diferencia. A marcha da semente à árvore florida e depois cheia de frutos é a marcha da diferenciação. As sementes de uma mesma espécie se confundem. Mas as árvores já formadas, a produzir flores e frutos,  são nitidamente diversas uma da outra. E assim sucede com todos os seres vivos. Marcadamente com os animais superiores. E, de maneira exponencial, com os homens.

Considerem-se aquelas estátuas da Ilha de Páscoa. Produzidas por artistas primitivos, elas se parecem todas entre si. Mas se um Michelangelo lhes tivesse dado acabamento, elas deixariam de se confundir e cada uma constituiria obra-prima à parte.

Da mesma forma, seria normal que, com o desenvolvimento da humanidade, os homens – mantendo embora a igualdade de natureza – fossem se diferenciando cada vez mais em seus acidentes. Ora, é o contrário o que hoje sucede: eles vão se confundindo cada vez mais. Não apenas as hierarquias se achatam, como as próprias diferenças vão progressivamente se extinguindo.

Essa constatação mostra o quanto vai calamitosa a decadência do gênero humano enquanto tal.

Balanço no limiar do ano 2000

Todo o agitar-se do século XX pode resumir-se, sob certo ponto de vista, em duas tendências principais:

1. Achatar as diversidades existentes no sentido vertical, reduzindo ao mínimo todas as diferenças que possam levar à constituição de uma hierarquia, de fato ou de direito.

2. Abater as diversidades que separam as pessoas no plano horizontal, despersonalizando-as com esse fim. Para isso, fazer minguar as barreiras entre os sexos, as idades, as raças, as nacionalidades, as condições de ordem moral, de educação, civilização, preeminência, função.

Utopia? Certamente. Mas uma utopia radicalmente perversa, porque ela se revolta contra Deus, Criador das características e das diferenças.

É como quem diz: “Sei que não poderei destruir inteiramente esta Catedral que é o Universo. Mas vou tentar destruí-la e desfigurá-la tanto quanto me for possível”.

As duas tendências enumeradas acima – o achatamento vertical e a indiferenciação horizontal — não são antagônicas mas, pelo contrário, constituem uma única e  mesma propensão: o igualitarismo.

E, pronunciada essa palavra, proferido esse diagnóstico, como por encanto todos os acontecimentos confusos do século expirante colocam-se em ordem:

* Foi o igualitarismo que abateu, no fundo das trincheiras, a promissora juventude da Belle Époque;

* Foi o igualitarismo que, por assim dizer, afogou na way of life hollywoodiana o Velho Mundo tradicional;

* Foi o igualitarismo que levantou a bandeira vermelha do comunismo e da luta de classes;

* Foi o igualitarismo que contrapôs a cruz gamada e o fascio do nazi-fascismo, à sociedade orgânica característica da Civilização Cristã;

* Foi o igualitarismo que alteou a bandeira negra do anarquismo, contra toda autoridade;

* Foi o igualitarismo que levou rapazes de classe alta ou média a envergarem trajes e costumes de proletários, a partir dos anos 50;

* É o igualitarismo que conduz o baile doido do consumo, das modas e dos espetáculos em nossos dias;

* É o igualitarismo que preside à gradativa destruição da diferença entre as pátrias mediante o processo da mundialização ou globalização;

* É o igualitarismo que preside à disseminação do vazio e à escalada da insignificância;

* Em resumo, foi o igualitarismo que comandou o conjunto de transformações ciclópicas que, a partir da promissora Belle Époque do começo do século, desembocaram numa pseudo-civilização ex-cristã, que é o que hoje vemos, com tristeza e reprovação.

Conclui-se que, como sempre ensinou o teólogo das desigualdades sociais (7) Plinio Corrêa de Oliveira, o  igualitarismo foi a religião de século XX.

Na demolição de todas as desigualdades e diversidades, o homem contemporâneo está pondo o mesmo empenho que os medievais deitaram na construção de suas grandiosas catedrais (8).

Que nesse período o homem tenha ido à lua ou tenha posto em marcha os computadores mais sofisticados, isso absolutamente não nos consola. O século XX, na ordem de valores superiores, na ordem da qualidade, não foi grande em quase nada, exceto na enorme capacidade de destruir a Civilização Cristã. Uma destruição geralmente flácida, é verdade. Mas apesar disso, e talvez por causa disso, portentosamente eficiente.

E assim como um homem inconsciente de sua desgraça, o século XX ocupa, na solene galeria dos séculos e dos milênios, a postura de um insignificante tolamente crédulo. Insignificante por que reduzido à menor expressão; e tolamente crédulo por não perceber seu lamentável estado e continuar desvanecido com as purpurinas da tecnociência, do consumo e da globalização.

De um velho esclerosado costumava-se dizer antigamente que era um puer centum annorum: um menino de 100 anos. Ao completar os seus 100 anos, é este o qualificativo que o século XX merece. Excluída, é claro, a inocência própria à infância sadia e autêntica.


Notas

1. De outro lado, neste fim do século, é dos Estados Unidos que procedem promissores sintomas de repúdio ao aleijão pós-moderno.

2. Saulo Ramos, conhecido jurisconsulto paulista, em viagem por aquelas bandas, com agudo senso de observação, ofereceu concludente descrição do que chama “assassinato da alma russa” (“Folha de S. Paulo”, 3 de agosto de 1995).

2BIS: O prazer de consumir potencializou-se com chamada “segmentação”, que substituiu a antiga produção e consumo de massa. Hoje a oferta de bens tende a ser cada vez mais diversificada, pelo que se torna mais atraente. A isto se soma a chamada “estetização” dos produtos que, em última análise, não passa de um  requinte na arte de vender ilusões, juntamente com as mercadorias. Tudo isso torna “technicolor” o vazio pós-moderno. Como diz um autor, “a fábrica, suja, feia, foi o templo moderno; o shopping, feérico em luzes e cores, é o altar pós-moderno” (Jair Ferreira dos Santos, “O que é pós-moderno”, Brasiliense, 17ª impressão, 1997, p. 10). “O consumidor de hoje é um bípede com a boca aberta”, afirmou em pitoresca linguagem o chef-patron Laurent Suaudeau, em entrevista a esta revista.

3. Lipovetsky, Gilles,  L’Ère du Vide (Gallimard, Paris, 1993), p. 110.

4. Lipovetsky, op. cit., p. 71.

5. O Estado de S. Paulo, 1-2-99, p. A9.

6. “Pós-Modernismo, a Lógica Cultural do Capitalismo Tardio”, p. 359.

7. Expressão cunhada pelo brilhante intelectual italiano Giovanni Cantoni.

8. O leitor de Catolicismo, identificado com a doutrina católica, geralmente dispensa a demonstração de que o igualitarismo é um erro que não encontra guarida na doutrina da Igreja. Em síntese, Deus é o autor das desigualdades e portanto, de si, elas são boas e contribuem para a beleza e ordem do Universo. O Prof. Plinio Corrêa de Oliveira, apoiado no ensinamento dos Papas, o demonstrou cabalmente em várias obras, sobretudo em “Revolução e Contra-Revolução” e em “Nobreza e elites tradicionais análogas”.

9. Este artigo é a condensação de trabalho consideravelmente mais extenso. Os que desejarem receber gratuitamente tal trabalho, mais matizado e acompanhado de indicações bibliográficas mais completas, podem pedi-lo à Redação de Catolicismo ou pelo endereço eletrônico:leodan@uol.com.br


Como surgiu a massa pós-moderna

O tipo humano “pós-moderno”, de nossos dias, é o produto de uma longa gestação, que consumiu várias décadas.

1918: após a Primeira Grande Guerra a influência cultural norte-americana, tomada em seus aspectos mais “hollywoodianos”, torna-se proeminente.

Fim dos anos 20: surgem nessa época os primeiros sintomas do fenômeno “geração-nova”, também conhecido em alguns ambientes como “geração coca-cola”. Notam-se, no tipo humano que vinha despontando, certas fragilidades, as quais provocam estranheza nas gerações anteriores. Dir-se-ia que minguavam nele as capacidades próprias ao estado adulto pleno: a atenção, a compreensão, a direção e a autocensura.

Anos 50: ocorre a grande revolução do lazer e do quotidiano, provocada pelo rock-and-roll, a beat-generation, seus anexos e conexos. Como explica o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira, surgiu então “um feitio de espírito que se caracteriza pela espontaneidade das reações primárias, sem o controle da inteligência nem a participação efetiva da vontade; pelo predomínio da fantasia e das ’vivências’ sobre a análise metódica da realidade”.

Maio de 1968: estoura a revolução estudantil da Sorbonne. Com o dístico “é proibido proibir”, alteia-se a bandeira negra anarquista e reforça-se ainda mais a tendência para a “espontaneidade das reações primárias”. Note-se: foi uma revolução de classe média.

1989: o desmoronamento da Cortina de Ferro contribuiu para incrementar certo clima de despreocupação e otimismo extremado.

Anos 90: O individualismo, o hedonismo e o narcisismo pós-modernos se estabelecem por toda a parte. A massa pós-moderna prossegue em sua expansão flácida, pouco perceptível, mas extremamente rápida.

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